- Nº 2101 (2014/03/6)
Encontrar a imensa palavra

<i>Armadilha</i>, de Rui Nunes

Argumentos

A viagem, a última viagem? Há um caminho, a pés nus, que o olhar, mesmo a caminho de cegar, teima em percorrer com deslumbrada angústia; obstina-se em soletrar essa luz esquiva para reaprender a memória. Uma viagem que se faz ao mais substantivo território da memória, por dentro de um chão, ou sobre ele, na porosidade das palavras que restam. Palavras de arremesso, como fogo, como desistência, como fuga. Ir ao fundo, percorrer os caminhos nessa agressão constante de estar vivo e atento, e com os olhos a cegar, lenta, inexoravelmente, a ficarem mais incapazes para olhar e, olhando, revelar o mundo, o que se aprendeu antes de esgotar a luz, ou o caminho. Mas achar a palavra, as palavras e essa eternidade que as funda, que nelas habita mesmo a derruir, que com elas, soletrando, achamos: um sentido, mesmo que absurdo, uma palavra que nos remete a algum chão, o da infância, ou do Outono da vida, quando incessante, tenazmente buscamos o sentido; o dos lugares em que as raízes sobem da terra e nos acossam, ou outros que buscamos algures no vasto mundo. Um sinal que nos identifique, uma estrada, um muro, uma palavra, ou um nome para o oculto, forma de vencermos Deus, ou os deuses – os deuses que inventamos com palavras, caminhando com elas, sobre feridas e fogo. Construímos deuses como construímos casas, sombras, abismos – com a mesma ingenuidade, as mesmas palavras que arremessamos contra o silêncio, contra a cal dos muros. A solidão é um árido território, tempo de regressarmos ao início das coisas, da qualidade das coisas e os olhos, mesmo a cegar, trazem a inquietude do real que lembramos, dos dias felizes (?), e vem tão de súbito, tão ácido como o silêncio, que nos magoa: boca a pedir água, cama, qualquer chão para o corpo. Chão reconhecido desde a infância. Lonjura de nós, Outono será, trave a que já não chegamos de tão alta, tão distante desta realidade que hoje somos, do corpo que habitamos em rota de colisão com os sentidos: memória apenas, a infância, o jogo. Por isso usamos as palavras, para que a luz não se extinga de vez, agora que a de Deus se apagou. Palavras ou pavios, forma de luz para os olhos que teimam em ver, em reconhecer os caminhos mesmo que os muros os tapem, os cerquem de vidros, de arame farpado. Como Álvaro de Campos precisamos escalar os muros com o barro das palavras, sair do labirinto que erguemos com as nossas artesanais forças, frágeis mãos, labirinto que é o mundo, os nossos labirintos e pedir água, ou cama, ou sombra, uma arma, um Deus de feira: precisamos agitar o medo antes que a noite nos acosse e dentro dela, no escuro, nem as palavras se acendam de tão gastas. Procuramos a casa dos dias que julgávamos felizes, a casa onde nos acolham como estrangeiro. A raiz é uma intensa vigilância, e tacteamos, inquietos e frágeis, tacteamos, em busca da palavra exacta, mas Só as coisas mortas apaziguam as palavras e A solidão é feita de regressos à memória, aos lugares da infância onde os lobos buscam a limpidez das fontes onde O Inverno morrerá com a chuva, a lama/onde resiste/um vestígio de frio.

A Armadilha, de Rui Nunes é isto: este redil entre a morte e as palavras, a memória e o abandono do próprio acto de esquecer: de esquecer os lugares, a luz que as palavras já não acendem e peregrinar, abrir caminhos sobre o lodo, com as palavras arremessadas contra o esquecimento – contra a inevitável solidão.

Temos, deste modo, um escritor, um poeta, que se move com claríssimo à-vontade pelos territórios de uma escrita que vem suscitando junto de alguma crítica interrogações e equívocos, perplexidades, adesões e afastamentos. Não é um universo de fácil análise, de resposta pronta às questões hermenêuticas que essa escrita permanentemente coloca, como os não serão os de Maria Velho da Costa, Maria Gabriela Llansol, Hélia Correia ou Ana Teresa Pereira, estejamos ou não em concordância com essas representações e o modo de as transportar para a literatura, sobretudo quando essa literatura é periférica e precisa, para se afirmar, de alargar o seu espaço de influência.

O leitor é aqui convocado, nesse universo em fuga, em negação, labiríntico, quase irreal de Rui Nunes, para um permanente exercício de interrogação, de êxtase interpretativo perante o caudal de palavras que ressoam as paredes do ser, no sentido bergsoniano, dado que toda a análise sobre um texto literário é especulativa, sobre este órfico modo de inventariação das palavras, a um tempo singular, sedutor e de complexa configuração. Nada, portanto, de incomensurável, que nos detenha na análise de uma escrita profundamente elidida nas suas dolorosas ressonâncias, mesmo quando esquivas, que traz para a nossa literatura uma sintaxe carregada de prodígios e emanações, que inaugura um modo outro de afirmação da língua, nos confluentes simbólicos desses territórios ficcionais, na sua progressão e a lucidez interpretativa de um mundo pessoal e ao mesmo tempo próximo das nossas perplexidades, das angústias que transportamos e não sabemos, com as palavras de artesão, definir com a clarividência com que Rui Nunes, expondo-se, o faz. A solidão, as sombras, a identidade, as ficções dentro da ficção, a aventura em curso sobre o domínio das palavras, da palavra, os textos afins e a língua como identidade e em função, em busca de uma determinada geografia –, ou, como Saussure afirma: Tomada no seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavalo sobre vários domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ainda ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos factos humanos, porque não se sabe como destacar a sua unidade.1

Ao lermos Armadilha, de Rui Nunes, livro que encerra a trilogia iniciada com A Mão do Oleiro (2011) e Barro (2012), sentimos como que um murro sobre uma ferida exposta. Não é da verdade dorida desta escrita que temos medo; é do que nela de nós revela, que nos assusta como um assombro ou uma revelação. E queremos esquecer, ou seja, guardar o livro, estes livros, e só regressar a ele quando dentro de nós essas configurações se aquietarem. Dado que nele, neste Armadilha em particular, há um tão forte registo autobiográfico, uma tão exposta sinceridade – «O que escrevo é uma imensa claridade. Onde me torno um alvo», confessa o autor de Grito –, que precisamos de tempo para sorver a angústia que perpassa a lírica lucidez desta fala. Na escrita de Rui Nunes, neste livro, há um mundo de peregrinações, de busca, pela memória, a mais próxima e a longínqua, que o poeta tenta resgatar mas sabe que aos poucos vai perdendo. Não na forma como no-lo desvenda esse universo, mas na capacidade de o continuar a olhar do mesmo modo, a inquirir, porque os seus rumores lhe chegam cada vez mais esboroados e ténues.

Desde Grito, de 1997 (Grande Prémio de Romance e Novela da APE), que esta matriz essencial, a das palavras que nos acossam – A palavra, hoje, mutila – se faz corpo de prosa e poesia de singular espessura, sempre nos limites da imediata compreensão dos signos que transporta. Rui Nunes é um raro descritor das inquietações do homem contemporâneo, um explorador sensível das suas ressonâncias; de um tempo fechado num casulo, numa caixa-forte – tempo que não se dá a ver, mas que o poeta, com o prodígio das palavras (mesmo quando gastas e imprecisas) tenta desocultar. Como a memória. Mesmo que para tanto não cheguem as palavras, os seus labirintos, o seu contínuo, dissimulado exercício. A sua busca.

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1 Saussure, citado por Manuel Gusmão na obra Uma Razão Dialógica, p.77 – Ed. Avante - 2011
Armadilha, de Rui Nunes, Relógio d’Água/2013

 

Nota: Devido a um lamentável engano, o texto publicado a semana passada – uma sobreposição de dois textos – saiu truncado e incompreensível. Pelo facto pedimos desculpa a Rui Nunes e aos nossos leitores.


Domingos Lobo